Diferentemente do que muitas vezes se acredita, não cabe a um corpo de jurados impor de maneira arbitrária seus valores e preferências na avaliação de um conjunto de trabalhos. Pelo contrário, o movimento deve ocorrer em sentido inverso: é a partir do teor exalado pela amostragem a ser analisada, das vertentes para onde ela aponta, que o processo começa. Ao júri, cabe acolher e respeitar essa orientação inicial — não importando o quanto ela esteja ou não alinhada a expectativas e conceitos prévios — para, então, executar seu trabalho.
Nesse sentido, a mensagem emitida pelo grupo de cartazes participantes do 33º Concurso do Cartaz do Prêmio Design MCB não poderia ter sido mais clara: reverberando a voz corrente que brota das mais diversas fontes — de instituições culturais a grupos de whatsapp —, foi extremamente significativa a quantidade de peças nas quais predominavam as referências a questões sociais e ao cenário político. Temas que, salvo pontualíssimas exceções, não costumavam comparecer ao concurso em edições anteriores.
Como tem ocorrido na maior parte dos casos — de instituições culturais a grupos de whatsapp —, o tópico foi muitas vezes acessado de forma pouco elaborada. Para que propor reflexões se é mais fácil impor “verdades”? Algumas execuções, de tão empolgadas com a bandeira em suas mãos, chegavam até a se esquecer de que o objeto sobre o qual se debruçavam deveria funcionar como cartaz para o 33º Prêmio Design MCB. Contudo, se parte das mensagens individuais haviam sido veiculadas no canal errado, isso não invalidava a mensagem coletiva. Negá-la, premiando peças que, apesar de executadas com excelência gráfica (foram várias) e hábil articulação de raciocínio (já nem tantas), se furtassem ao comentário desses conteúdos mais abrangentes, seria negar a função primordial do concurso em si. Afinal, se ausente do regulamento original, a escolha pela inclusão desse critério como item da seleção final veio após a escuta do próprio conjunto de cartazes. Trata-se, portanto, de ingrediente vital na composição do panorama a ser exposto — e premiado.
Assim, os três selecionados possuem muito mais em comum do que os vencedores e finalistas destacados em edições anteriores do concurso. Pois, além de atenderem aos requisitos habituais de seleção, também se propõe a discutir o cenário sócio-político do Brasil de hoje e, para tanto, lançam mão de premissas conceituais semelhantes, terminando por se estruturar sobre princípios formais muito similares: a imagem em detrimento do texto, a metáfora visual como elemento central.
Dois deles foram escolhidos, empatados, como o 2º lugar: o cartaz de Luan Piani projeta a sombra de um caixilho — ou seria uma grade? — sobre um piso de modulação igualmente ortogonal que, reforçada pela imagem monocromática, gera uma carregada sobreposição de grelhas. Já o cartaz criado por Guilherme Dorneles e Carolina Gehlen surge, num primeiro olhar, como um colorido irradiar de linhas para, logo, revelar-se um ralo para onde escorrem as mais diversas matizes, os mais diversos projetos. É nesse vai e vem comum a ambos, nessa certa indefinição — espacial em um, direcional em outro — que reside boa parte de sua força, evitando leituras exageradamente literais, mesmo que os dois partam de metáforas visuais bastante claras de, respectivamente, opressão e desencanto.
O que fez com que o cartaz apontado como vencedor não fosse um deles, mas o de Stephanie Mathias de Souza, foi que este acrescenta às virtudes da dupla anterior uma sutil possibilidade de reconstrução. Novamente, temos a elaboração de comentários mais abrangentes articulada por meio de uma metáfora visual em torno de um artefato componente do léxico do Prêmio MCB. A diferença é que, aqui, o prato rachado pode ser lido num feixe interpretativo um pouco mais amplo do que a grade ou o ralo. Não apenas pela maior polissemia do objeto em si quando comparado aos outros dois, mas também porque a fratura pode ter ocorrido não apenas no âmbito global (nacional, se preferir), mas também no próprio território sintático do cartaz, em seu branco imaculado. Também ele — e o que ele representa — pode ter se quebrado. E, se já não é possível remendá-lo — nem por meio da nostalgia por um projeto de modernidade perdida, nem com a preguiçosa adoção do improviso como virtude — tal constatação não deixa de funcionar como um premente ponto de partida.
Comissão julgadora Concurso do Cartaz 2019
Gustavo Piqueira (Coordenador)
Tereza Bettinardi
Gil Tokio
Celso Hartkopf
Vanessa Queiroz