Artigo “Cadeiras, sofás, canapés: o corpo no ambiente doméstico do século XIX”, por Erica de Oliveira
O que tem de especial em sentar-se ao ponto de este ser o assunto do nosso 14° texto do projeto Acervo Revelado? As maneiras de sentar, os objetos utilizados para isto ou a ausência deles compõem, antes de tudo, práticas sociais e, portanto, possuem diferenças conforme sociedade, espaço e tempo. No Brasil, até o início do século XIX, vigorou formas de sentar que dispensavam o uso de cadeiras ou outros móveis similares. O sentar era pouco mediatizado e sentar-se no chão e em esteiras era bastante difundido, uma vez que havia uma escassez de móveis no geral, e de mobiliário de assento em particular.
Conforme nota Vânia Carneiro de Carvalho (2008), a partir do trabalho de Sigfried Giedion, havia a concepção oriental e ocidental de conforto ao sentar. O primeiro não mobiliza objetos, centra-se apenas no corpo, e consiste em sentar colocando o peso do tronco sobre os ossos da bacia e cruzando as pernas dobradas para trás. Já o modo ocidental está baseado no uso de artefatos (como cadeiras), sobre os quais apoia-se o quadril e as pernas ficam estendidas em direção ao chão (CARVALHO, 2008). Segundo a autora, até o início do século XIX, era comum principalmente as mulheres sentarem à maneira asiática, conforme descrito no primeiro exemplo. Esta forma de sentar era feita no chão de terra batida, nas esteiras e nas marquesas, além do uso da rede, que permitia uma grande variedade de posições corporais (CARVALHO, 2008).
Até este período, as cadeiras eram encontradas apenas em edifícios públicos e religiosos, o que dava ao móvel uma conotação de prestígio e poder. Fora desses espaços, as cadeiras existentes eram as dobráveis e portáteis, que correspondiam a um modo de vida menos estável e mais migratório (CARVALHO, 2008). Podemos ver a seguir (imagem 1) um exemplo desse tipo de mobiliário mais portátil. Trata-se de uma cadeira dobrável feita em jacarandá e couro lavrado, datada do século XVIII. Dessa forma, por estarem mais circunscritas aos ambientes oficiais, as cadeiras eram móveis caros e associados aos homens, que geralmente ocupavam tais lugares. Ao entrar nas casas, portanto, esses objetos estiveram associados primeiramente às figuras masculinas. As mulheres permaneceram mais tempo ligadas às redes e ao chão (CARVALHO, 2008).
A difusão desses móveis, contudo, ocorreu de forma desigual. Há relatos de casas de meados do século XIX que possuíam apenas alguns bancos e redes: “[…] não há outro mobiliário, exceto alguns tamboretes e a rede que faz às vezes de cadeira e sofá. Quando entra uma visita, convidam-na a sentar-se na rede. As pessoas íntimas recostam-se juntas na mesma rede, uma para cada lado; é arranjo muito cômodo para conversar.” (BATES, 1944, p. 174). E no final desse período ainda há descrições literárias de ambientes que não possuíam sequer uma cadeira, como na passagem abaixo, em que a personagem muito pobre e já doente não possuía um assento para sua visita:
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*Erica de Oliveira é analista do Núcleo de Preservação e Pesquisa do Museu da Casa Brasileira desde 2017. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, Bacharela em História (2014) e Técnica em Museologia pelo Centro Paula Souza (2008). Pesquisa a relação entre materialidade e a interioridade humana, com destaque para temas relativos ao espaço doméstico. Atua desde 2008 nas áreas de documentação e gestão de acervos museológicos e com produção de exposições. No Serviço de Objetos do Museu Paulista foi também membra do Comissão Técnica Administrativa e do Conselho Diretor do Museu como representante discente. Além disso, foi pesquisadora da Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo como bolsista do projeto Fapesp A USP durante o regime autoritário: formas de controle e resistência na Universidade de São Paulo, 1964 – 1982.